Pular para o conteúdo principal

O que você precisa saber sobre o Enfoque CTS

    

Fonte: feito â mão

 
    Digamos que seu professor de Didáticas no Ensino de Ciências solicita que você faça uma pesquisa sobre o que é o enfoque CTS e como esse conceito se aplica em sala de aula na escola básica. Sagazmente você recorre à mágia das inteligências artificial (IA) e chega em algumas conclusões:

Principais ideias sobre o movimento CTS (criado por IA)

1. Origem do movimento CTS

  1. O CTS surgiu entre as décadas de 1970 e 1990.

  2. Nasceu de críticas à visão neutra e isolada da ciência.

  3. Buscava aproximar ciência, tecnologia e sociedade nos currículos.

2. Ideias centrais do CTS

  1. Ciência e tecnologia são influenciadas por contextos sociais, políticos e culturais.

  2. A produção científica envolve valores, interesses e escolhas.

  3. O ensino de ciências deve ser interdisciplinar.

  4. A educação deve formar cidadãos críticos e participativos.

  5. O ensino deve usar problemas sociocientíficos reais como ponto de partida.

3. Críticas ao CTS

  1. Risco de reduzir conteúdos científicos se a contextualização for exagerada.

  2. Pode gerar discussões superficiais se não houver rigor nos dados.

  3. Exige formação docente adequada e tempo de planejamento.

4. Relevância atual para a escola básica brasileira

  1. O CTS torna o ensino mais conectado à realidade dos alunos.

  2. Desenvolve pensamento crítico e alfabetização científica.

  3. Ajuda o aluno a participar de debates públicos sobre ciência e tecnologia.

  4. Favorece interdisciplinaridade entre Ciências e Humanidades.

  5. Está alinhado com competências da BNCC (investigação, argumentação, cidadania).

5. Como aplicar o CTS na prática escolar

  1. Trabalhar problemas locais (água, lixo, energia, saúde, poluição).

  2. Organizar aulas em torno de perguntas geradoras.

  3. Realizar investigações simples: experimentos, entrevistas, análise de notícias.

  4. Discutir impactos sociais, econômicos e políticos do problema.

  5. Criar produtos finais: debates, cartazes, campanhas, relatórios para a comunidade.

6. Ferramentas avaliativas compatíveis com CTS

  1. Rubricas que avaliem conceitos, evidências e argumentação.

  2. Portfólios e diários de bordo.

  3. Avaliação por pares.

  4. Relatórios reflexivos que incluam impactos sociais.

7. Como começar com baixo custo

  1. Usar problemas e recursos locais (rios, praças, lixo da escola).

  2. Trabalhar com notícias atuais.

  3. Realizar experimentos simples e acessíveis.

  4. Produzir textos e debates integrados com outras disciplinas.

8. Síntese final

  1. O CTS é um enquadramento educativo que une ciência e cidadania.

  2. Requer equilíbrio entre conhecimento científico e contexto social.

  3. Ajuda a formar alunos críticos, engajados e capazes de participar de decisões sociocientíficas.

    

Um pouco mais profundo

    Essas 32 ideias de fato dá uma boa noção sobre como trabalhar as relações entre Ciência, Tecnlogia e Sociedade na escola básica, principalmente considerando seu uso na educação brasileira por tornar o ensino mais conectado à realidade dos alunos, desenvolvendo o pensamento crítico e a alfabetização científica, e está alinhado com as competências de cidadania e investigação da BNCC. O que as ideias acima revelam é que, na prática, o CTS é aplicado ao trabalhar problemas sociocientíficos reais (como água, lixo ou saúde) como ponto de partida, exigindo aulas organizadas em torno de perguntas geradoras e investigações simples (experimentos, análise de notícias) para discutir os impactos sociais, econômicos e políticos desses temas, favorecendo a interdisciplinaridade entre Ciências e Humanidades. 
    Embora exija uma formação docente adequada e um planejamento cuidadoso para evitar a redução de conteúdos ou discussões superficiais, o CTS pode ser iniciado com baixo custo usando problemas e recursos locais (como notícias atuais ou lixo da escola) e avaliado por meio de ferramentas como rubricas e portfólios, como foi recomendado, ajudando a formar alunos críticos, engajados e capazes de participar de decisões sociocientíficas.
    Porém, há outros nuances que as IA não conseguem acessar, pois faz parte de um escopo de pesquisa que contém anos de dedicação e experiências em sala de aula. Começo por destacar o trabalho de Pinheiro, Silveira e Bozzo (2007), que consta com quse 700 citações no Google Scholar. As autoras apresentam um conjunto de contribuições ao debate sobre CTS que não aparece nas 32 ideias da IA destacada acima, e que ampliam de maneira significativa a compreensão do enfoque. Entre essas novas ideias, destaca-se inicialmente a advertência dos autores sobre o risco da “vulgarização científica”, isto é, da difusão de informações sobre ciência e tecnologia sem profundidade crítica, o que pode gerar uma falsa sensação de entendimento e, paradoxalmente, aumentar a alienação do público em vez de reduzi-la. Essa crítica se articula a outra contribuição importante do texto: a identificação de diferentes atores sociais envolvidos nos processos tecnocientíficos, desde indivíduos diretamente afetados por tecnologias até consumidores, ONGs, ambientalistas, especialistas e grupos ideológicos,  ressaltando que qualquer decisão sobre ciência e tecnologia é essencialmente um processo de negociação entre interesses diversos. O texto também destaca a necessidade de participação pública efetiva nas decisões tecnocientíficas, defendendo que cidadãos devem exigir igualdade de voz, transparência, tempo e condições reais de intervenção sobre decisões que muitas vezes já chegam prontas ao público apenas para legitimação. Essa defesa da democracia tecnocientífica amplia o papel social atribuído ao CTS.
    Os autores introduzem ainda uma discussão aprofundada sobre a relação entre CTS e a Educação Tecnológica proposta pelos PCNEM, destacando que, no contexto desses documentos, educação tecnológica não se limita a fabricar artefatos, mas envolve compreender a origem social, política e cultural dos artefatos e mentefatos, estes últimos entendidos como valores, ideologias, filosofias e sistemas de crença que acompanham a produção tecnológica. Essa perspectiva reforça a necessidade de analisar antecedentes sociais e repercussões éticas, ambientais e culturais das tecnologias, algo que não havia surgido explicitamente nas sínteses anteriores. Outro elemento novo e relevante é a classificação apresentada no artigo sobre três modalidades de implementação do enfoque CTS: o “enxerto CTS”, a “ciência por meio de CTS” e o “CTS puro”, distinção que ilumina diferentes formas de reorganizar o currículo e que não havia sido mencionada antes.
    O artigo de Pinheiro, Silveira e Bozzo (2007), também destaca o alinhamento profundo entre os objetivos da LDB e dos PCNEM e o enfoque CTS, articulando conceitos como estética da sensibilidade, política da igualdade e ética da identidade, elementos que fundamentam uma formação humana, ética e democrática. Essa leitura amplia a compreensão do CTS como parte de um projeto formativo maior, não apenas como uma metodologia didática. Os autores ainda enfatizam a necessidade urgente de formação inicial e continuada específica em CTS, apontando que muitos professores demonstram pouco conhecimento sobre o enfoque, o que impede sua efetivação nas escolas; essa ênfase na formação docente é apresentada com base em diversas pesquisas nacionais e internacionais. Outra contribuição inédita do texto é a crítica à importação acrítica de currículos estrangeiros de CTS, que muitas vezes são aplicados no Brasil sem considerar problemas sociais, tecnológicos e culturais locais, o que compromete sua relevância pedagógica.
    Os autores também argumentam que o Brasil possui poucas instituições dedicadas a pesquisas em CTS, o que limita o avanço da área e dificulta a formação de professores. A partir dessa constatação, reforçam que reformas curriculares devem ser acompanhadas de políticas institucionais de formação docente, evitando que mudanças fiquem restritas ao papel. Além disso, o artigo apresenta uma defesa contundente do CTS como ruptura da pedagogia tradicional: o enfoque propõe que professores e alunos construam conhecimento de maneira intersubjetiva, abandonando a lógica de transmissão e abrindo espaço para questionamento, imaginação, divergência e reelaboração. Essa concepção rompe com relações hierárquicas rígidas e transforma profundamente o papel do professor.
    Por fim, outra contribuição relevante é a apresentação do CTS como um campo potente para compreender a tecnociência moderna, não apenas como instrumento pedagógico, mas como lente epistemológica capaz de revelar a complexidade, os conflitos e as implicações políticas da produção científica e tecnológica. O texto também mobiliza a perspectiva de Edgar Morin para mostrar que CTS contribui para superar a fragmentação dos saberes, articulando conhecimentos e promovendo o pensamento complexo, uma dimensão epistemológica e curricular que não havia sido destacada anteriormente. Em suma, o artigo reforça que o CTS não deve ser responsabilidade exclusiva das ciências naturais: História, Geografia, Matemática e outras áreas também devem incorporar o compromisso de analisar criticamente a ciência e a tecnologia, pois decisões sociotécnicas dizem respeito a toda a sociedade. Com isso, a participação democrática, a justiça social e a problematização de questões tecnocientíficas tornam-se compromisso transversal da escola, e não tarefa isolada de um componente curricular.


O enfoque CTS e Cidadania

    Já trabalhei o artigo "Educação CTS e Cidadania: Confluências e Diferenças", de Wildson Luiz Pereira dos Santos (2012) aqui no Blog. nele o professor defende que a Educação CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) no ensino de ciências compartilha objetivos com o movimento de letramento científico, especialmente no que se refere à formação para a cidadania, mas não deve ser confundida ou reduzida a ele. O professor Wildson também caracteriza a Educação CTS pelo seu foco nas inter-relações entre ciência, tecnologia e sociedade, integrando educação científica, tecnológica e social, com discussão de aspectos históricos, éticos, políticos e socioeconômicos. Ele apresenta diferentes classificações da abordagem CTS, como as de Aikenhead e Luján López, que variam conforme a ênfase dada às relações CTS em relação ao conteúdo científico tradicional. Destaca-se ainda a clara diferença entre o ensino clássico de ciências, centrado na lógica disciplinar e no método científico, e a Educação CTS, que se organiza a partir de temas sociais, adota uma perspectiva interdisciplinar e prioriza a tomada de decisão e a reflexão sobre valores.


     

    No contexto brasileiro, observa-se um crescimento significativo de pesquisas e da incorporação da perspectiva CTS em documentos oficiais do ensino médio. No entanto, é essencial evitar a transposição acrítica de modelos estrangeiros, defendendo-se, em vez disso, uma adaptação consciente às realidades locais. Embora a Educação CTS seja crucial para a formação cidadã, Wildson adverte que reduzir a educação científica apenas a essa abordagem pode negligenciar outros domínios fundamentais do letramento científico, como a compreensão da natureza da ciência e o domínio de conceitos científicos essenciais. Portanto, é preciso valorizar a Educação CTS como um caminho importante, porém não exclusivo, para a educação científica. Seu papel é vital para promover a compreensão crítica das relações entre ciência, tecnologia e sociedade, bem como para preparar os estudantes para a participação em decisões sociocientíficas, sem, contudo, abandonar a necessária aprendizagem conceitual das disciplinas científicas, que também constitui base indispensável para uma formação integral.

O que dizem as pesquisas sobre formação CTS?

    Com base na análise das pesquisas apresentadas no ENPEC, os pesquisadores: Amanda Eloisa Ribeiro Gomes; Mateus Xavier Yamaguti; Nataly Carvalho Lopes; e Alice Assis (2025) identificaram que a formação de professores em Educação CTSA tem sido marcada pela predominância da abordagem de Argumentação Lógica. Essa corrente, que representa mais da metade dos trabalhos estudados, enfatiza a capacitação docente para mediar debates fundamentados em evidências, fomentar a tomada de decisão consciente e promover uma cidadania responsável. Essa tendência reflete uma forte valorização da dimensão crítica e deliberativa no ensino de ciências, alinhando-se ao objetivo de preparar estudantes e, por extensão, os futuros professores, para atuarem de forma reflexiva em uma sociedade cada vez mais influenciada por questões científicas e tecnológicas.
    Entretanto, o estudo também revela uma sub-representação significativa de abordagens históricas e socioculturais na formação docente. A escassa presença dessas perspectivas indica uma lacuna na compreensão da ciência como um empreendimento humano, intrinsecamente ligado a contextos culturais, políticos e históricos. A carência de trabalhos que explorem a natureza da ciência e sua construção social limita a possibilidade de os professores desmistificarem a imagem do cientista como um “super-herói” e de contextualizarem o conhecimento científico em suas realidades específicas, fragilizando uma formação mais ampla e crítica.A seguir um trabalho é apresentado sobre o tema. se tiver um tempinho a mais vale a pena verificar a percepção das crianças da escola:


    Em contrapartida, observa-se um crescimento emergente de abordagens centradas em valores e na justiça eco-social. A corrente centrada em valores, presente em mais de um quinto dos trabalhos, destaca a importância de integrar explicitamente dimensões éticas e morais na formação, preparando os professores para discutir as implicações sociais e ambientais do desenvolvimento tecnocientífico. Já a justiça eco-social, embora ainda incipiente, aponta para uma formação docente comprometida com a equidade, a sustentabilidade e os direitos humanos, enfatizando o papel transformador da educação científica.
    Diante desse panorama, conclui-se que é necessária uma ampliação e diversificação das abordagens CTSA na formação de professores. A superação da hegemonia de uma única corrente – ainda que relevante – é fundamental para enriquecer a prática docente. A incorporação de perspectivas históricas, socioculturais e de justiça social permite uma compreensão mais complexa e contextualizada da ciência, alinhando a formação às demandas sociopolíticas contemporâneas e fortalecendo o caráter interdisciplinar e humanizador da educação em ciências.
    Por fim, os resultados reforçam a Educação CTSA como eixo de uma formação docente transformadora. Para além da transmissão de conteúdos, essa abordagem posiciona o professor como intelectual e agente de mudança, capaz de articular ciência, tecnologia e sociedade em prol de uma cidadania ativa e crítica. A inclusão de temáticas como direitos humanos, justiça social e sustentabilidade não apenas enriquece o ensino, mas também contribui para a construção de uma sociedade mais democrática e inclusiva, consolidando o papel da educação científica como ferramenta de emancipação e transformação social.


Diferenças entre CTS e CTSA 

    O termo CTSA – Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente começa a aparecer com maior força a partir da década de 1990, especialmente no contexto latino-americano e ibérico, quando pesquisadores e documentos curriculares passaram a enfatizar explicitamente a dimensão ambiental como parte indissociável das discussões tecnocientíficas. 
    Essa ampliação ocorre por dois movimentos históricos principais:
  • A emergência da crise ambiental global entre os anos 1980 e 1990, impulsionada por debates internacionais como o Relatório Brundtland (1987), a ECO-92 (Rio de Janeiro) e o crescimento da educação ambiental crítica no Brasil e na América Latina.
  • A aproximação entre CTS e Educação Ambiental Crítica, especialmente em currículos de Ciências Naturais, que passam a incluir de modo obrigatório conteúdos relacionados à sustentabilidade, riscos ambientais, justiça socioambiental e impactos ecológicos das tecnologias.
    Com isso, autores espanhóis e brasileiros começam a empregar o termo CTSA para reforçar que o ambiente não é apenas consequência, mas dimensão constitutiva da relação entre ciência, tecnologia e sociedade.
    Por outro lado, tal ação revela uma perspectiva bastante difundidade sobre a compreensão do ambiente, e a própria ideia acerca da "ntureza". Um autor frequentemente citado como crítico à incorporação da letra “A” na sigla CTS é Joan Manuel Acevedo Díaz, pesquisador espanhol da área de estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade. Para Acevedo, a adoção do termo CTSA é desnecessária, pois a dimensão ambiental já está incluída de forma intrínseca na análise CTS. Qualquer investigação séria sobre tecnologia e sociedade, segundo ele, inevitavelmente aborda impactos ecológicos. Ao acrescentar o “A”, corre-se o risco de produzir uma hiperespecificação que transmite a falsa impressão de que a questão ambiental constitui um eixo separado, quando, na verdade, deveria ser entendida como componente transversal das relações entre ciência, tecnologia e sociedade. O autor também alerta que a ampliação da sigla tende a torná-la excessivamente abrangente, diluindo o foco crítico do movimento CTS e convertendo-o em um guarda-chuva conceitual impreciso. 
    Além disso, A adoção do termo CTS já é suficiente para abarcar de forma rigorosa e integrada as relações entre ciência, tecnologia e sociedade, pois, do ponto de vista epistemológico, não há como separar esses domínios da dimensão ambiental. A própria distinção entre sociedade e natureza é uma construção moderna, questionada por perspectivas ontológicas e políticas contemporâneas como o Buen Vivir e pelos direitos da natureza reconhecidos na Constituição do Equador de 2008, que tratam ambiente e vida social como partes de um mesmo sistema. Leia mais sobre Pachamama e os Direitos da Natureza do Equador e O Caso Específico dos Rios. Abaixo uma fala importante do equatoriano Alberto Acosta sobre  o conceito "Bin Vivir":

        
    Nessa lógica, qualquer análise séria das dinâmicas sociotécnicas necessariamente implica considerar seus impactos ecológicos, territoriais e biofísicos, tornando redundante a adição da letra “A” à sigla. Acrescentar o “A”, portanto, não apenas cria uma hiperespecificação desnecessária, como também reforça uma separação artificial entre natureza e sociedade, contrariando quadros teóricos latino-americanos que compreendem o ambiente como elemento constitutivo das relações sociais. Assim, o CTS, ao manter ciência, tecnologia e sociedade como eixos analíticos indissociáveis, já inclui o ambiente de forma orgânica e conceitualmente mais coerente, sem fragmentar o campo ou inflacionar sua nomenclatura.

Pensamento Latino Ciências, Tecnologia e Sociedade (PLACTS)

    O Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS) constitui um movimento intelectual e político que emergiu entre as décadas de 1960 e 1970 na América Latina, motivado por um contexto de industrialização dependente, forte influência geopolítica dos Estados Unidos, ditaduras militares e debates intensos sobre desenvolvimento, desigualdade e autonomia. Diferentemente do movimento CTS anglo-saxão, que nasce como crítica à neutralidade da ciência e à tecnocracia, o PLACTS surge enraizado nas experiências concretas do subdesenvolvimento latino-americano e nas contradições do modelo de modernização importado. Seus primeiros formuladores buscavam compreender as raízes estruturais da dependência científica e tecnológica e defender alternativas que articulassem ciência, tecnologia e sociedade a partir das necessidades, valores e projetos da região. Entre os nomes pioneiros mais influentes estão Amílcar Herrera, cujo Relatório Herrera (1970) criticou de forma contundente o modelo de desenvolvimento baseado na expansão ilimitada e mostrou a necessidade de políticas científicas autônomas; Oscar Varsavsky, com sua teoria dos “estilos de desenvolvimento”, defendendo que a América Latina deveria adotar trajetórias científico-tecnológicas orientadas a problemas sociais locais; Jorge Sabato, criador do “Triângulo de Sabato”, que destacou a articulação estratégica entre Estado, setor produtivo e infraestrutura científica; Miguel Wionczek, que analisou a dependência tecnológica da indústria latino-americana; e Celso Furtado, cujas reflexões sobre subdesenvolvimento fundamentaram boa parte do diagnóstico crítico do movimento.
    Ao longo das décadas de 1980 e 1990, o PLACTS se consolidou institucionalmente por meio da criação de centros de pesquisa, programas de pós-graduação e grupos de política científica na Argentina, Brasil, México e outros países, ao mesmo tempo em que suas ideias passaram a influenciar políticas públicas voltadas à inovação, à formação científica e à redução das desigualdades. Nesse período, o movimento se aproximou do CTS internacional sem abandonar sua especificidade crítica, sempre ressaltando que a América Latina possui problemas próprios que não podem ser compreendidos a partir de modelos teóricos pensados para realidades centrais. No início do século XXI, o PLACTS incorporou novos temas, tais como epistemologias decoloniais, conhecimentos indígenas, tecnologias sociais, justiça ambiental, direitos da natureza e impactos sociopolíticos da globalização tecnocientífica. Autores como Hebe Vessuri, Pablo Kreimer, Hernán Thomas, Renato Dagnino, Eduardo Gudynas e Alberto Acosta renovaram o movimento ao destacar questões como circulação assimétrica do conhecimento, inovação orientada a problemas sociais, crítica ao extrativismo, ecologias de saberes e o conceito de Buen Vivir como alternativa civilizatória à modernidade tecnológica dependente.
    Nos últimos anos, o PLACTS mantém intenso dinamismo por meio de redes como a ESOCITE, que articula pesquisadores de toda a América Latina, e da produção científica de periódicos como a revista REDES, marco central do campo. As agendas contemporâneas do movimento incluem debates sobre mineração e conflitos socioambientais, governança de pandemias, biotecnologias, vigilância digital, mudanças climáticas, políticas de ciência aberta e tecnologias sociais voltadas à inclusão e à justiça. Ao longo de mais de cinco décadas, o PLACTS se consolidou como um dos movimentos mais originais e críticos de pensamento sobre ciência e tecnologia no mundo, ao articular diagnósticos profundos sobre dependência e desigualdade com propostas transformadoras que valorizam autonomia, justiça social, pluralidade epistêmica e usos socialmente orientados da tecnociência.
    Dentro do Ensino de Ciências brasileiro, prevalece a abordagem norteamericada de CTS. Nos Estados Unidos, esse pensamento foi profundamente influenciado pelo crescente ativismo ambiental, que ganhou força emblemática com a publicação de Primavera Silenciosa (1962), da bióloga marinha Rachel Carson.


    Rachel Carson, com sua obra seminal, não apenas denunciou os efeitos devastadores dos pesticidas sintéticos, especialmente o DDT, sobre os ecossistemas e a saúde humana, mas também desafiou diretamente o paradigma de progresso tecnológico irrestrito que caracterizava o pós-guerra norte-americano. Ao expor como a ciência, quando desvinculada de uma reflexão ética e social, poderia gerar consequências ambientais catastróficas, Carson personificou a essência do ativismo CTS ao questionar a autoridade incontestável da tecnociência e ao exigir transparência e responsabilidade por parte das indústrias e do governo.
    O livro Primavera Silenciosa funcionou como um catalisador do ativismo ambiental norte-americano, mobilizando a sociedade civil e influenciando a criação de agências regulatórias e políticas públicas, como a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) e a proibição do DDT. Carson demonstrou como a crítica informada e acessível – baseada em rigor científico, mas articulada para o grande público, poderia fomentar uma consciência coletiva e pressionar por mudanças estruturais. Seu trabalho ilustra a potência de se compreender a ciência e a tecnologia como arenas de disputa política, onde valores sociais, interesses econômicos e preocupações ambientais se entrelaçam.
    Diversos cientistas, intelectuais e ativistas brasileiros estiveram vinculados direta ou indiretamente ao Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade, contribuindo para construir uma perspectiva crítica profundamente enraizada na realidade nacional. Entre os nomes mais significativos estão Celso Furtado, cuja interpretação estrutural do subdesenvolvimento influenciou todo o diagnóstico latino-americano sobre dependência científica e tecnológica; Milton Santos, geógrafo que analisou de modo brilhante a tecnocracia, a globalização e a racionalidade técnica como elementos produtores de desigualdade; Renato Dagnino, um dos principais difusores brasileiros da Tecnologia Social, conceito diretamente inspirado no PLACTS; Luiz Pinguelli Rosa, que atuou como pesquisador e ativista em debates sobre energia, clima e políticas tecnológicas; Carlos Vogt, envolvido em reflexões sobre política científica, inovação e público da ciência; André Gunder Frank, embora chileno-alemão, influenciou fortemente pensadores brasileiros ao teorizar sobre dependência e desenvolvimento desigual; e pesquisadores contemporâneos como Sérgio Salles-Filho, Hebe Vessuri (que atuou no Brasil por longos períodos), Fernanda Sobral, Lígia Maria de Souza e João Feres Júnior, que dialogam com temas de políticas científicas, inovação e assimetrias globais. 
    Apesar dessa tradição rica e profundamente vinculada às questões sociais e políticas brasileiras, é notável que são pouquíssimos os trabalhos que exploram e aplicam o PLACTS no ensino de Ciências no Brasil. A literatura educacional brasileira, especialmente a partir dos anos 1990, privilegiou quase exclusivamente o movimento CTS de origem norte-americana e europeia, reproduzindo seus modelos didáticos e suas interpretações teóricas de maneira muito mais ampla do que aquelas provenientes da tradição latino-americana.
    Essa predominância do CTS anglo-saxão pode ser explicada por diversos fatores. Em primeiro lugar, há a hegemonia epistemológica da ciência e da educação produzidas nos países centrais, o que resulta em forte circulação de modelos didáticos e curriculares anglófonos em detrimento de perspectivas periféricas. O Brasil, historicamente dependente das correntes teóricas internacionais, tende a importar estruturas conceituais já consolidadas, em vez de aprofundar suas próprias tradições intelectuais, como o PLACTS. Além disso, os materiais de CTS norte-americanos foram amplamente difundidos em programas de formação de professores, livros didáticos e políticas educacionais, sendo mais facilmente acessíveis, traduzidos e sistematizados. Outro fator relevante é que o PLACTS, por sua natureza crítica e politizada, possui forte componente estrutural e macroanalítico, discutindo dependência, injustiça global e autonomia tecnológica — temas teoricamente densos e com menor presença em propostas pedagógicas escolares, geralmente mais focadas em sequências didáticas práticas, temas controversos e estratégias de sala de aula.
    A ênfase exclusiva no CTS anglo-saxão produz implicações importantes: empobrece o ensino de Ciências ao retirar dele a discussão sobre dependência tecnológica, modelos de desenvolvimento, autonomia científico-tecnológica, desigualdades estruturais e projetos políticos de sociedade, temas que são centrais na realidade brasileira e latino-americana. Incorporar o PLACTS ao ensino de Ciências permitiria abordar não apenas controvérsias sociocientíficas globalizadas, como energia nuclear ou biotecnologia, mas também problemas latino-americanos específicos, como extrativismo, vulnerabilidade ambiental, desigualdade no acesso às tecnologias, soberania alimentar e modelos de inovação voltados ao bem comum. Na palestra da professora Dra. Tatiana Galieta é explorado esse aspecto. Veja seguir, se tiver um tempo:


     Portanto, a ausência dessa perspectiva no campo educacional revela tanto um problema epistemológico quanto um problema político: a incapacidade de reconhecer que o Brasil possui tradição própria, crítica e potente para pensar ciência, tecnologia e educação, e que essa tradição é, na verdade, muito mais adequada para compreender as contradições e necessidades da escola pública brasileira do que as referências importadas do Norte global.

    Diante de tudo o que foi discutido ao longo do texto, a minha principal recomendação para quem é professor ou professora de Ciências e quer trabalhar com CTS é começar entendendo que essa abordagem não é só uma “forma diferente de dar aula”, mas uma maneira de enxergar a ciência dentro da vida real. Para mim, isso significa olhar para cada tema de Física: energia, eletricidade, ondas, clima, tecnologias digitais, sempre lembrando que eles não existem sozinhos, mas estão conectados a decisões políticas, a interesses econômicos e aos problemas que afetam diretamente a comunidade onde a escola está inserida. Quando eu preparo uma aula com enfoque CTS, tento escolher questões que os alunos reconhecem no cotidiano, como o preço da energia, os impactos ambientais das tecnologias, os riscos de certos produtos químicos, o uso do celular, ou até os desafios de mobilidade e transporte na cidade. A partir disso, abro espaço para investigação, debates e comparação de pontos de vista, porque a ideia não é dar respostas prontas, mas ajudar os estudantes a construir uma opinião fundamentada, e isso envolve buscar dados, analisar notícias, questionar interesses e interpretar evidências.
    Uma dica importante é não ficar preso apenas às referências norte-americanas de CTS, que acabam dominando os materiais de formação. Eu percebo que olhar para o que pensadores latino-americanos discutiram, especialmente o pessoal do PLACTS, ajuda muito a conectar o ensino com a realidade brasileira, com temas como desigualdade tecnológica, problemas ambientais locais, dependência científica, extrativismo e modelos alternativos de desenvolvimento, quem sabe estudando em como lidar com a Inteligência Artificial (ainda vou escrecver sobre isso). 
    Trabalhar CTS também exige que eu abandone um pouco aquela postura de “professor que sabe tudo” e me coloque como alguém que aprende junto, que pergunta, escuta e constrói junto com a turma. É um processo mais demorado, mais imprevisível, mas extremamente rico. No fim das contas, o que eu tento fazer é transformar a aula de Física em um espaço onde os alunos percebam que a ciência não está distante da vida deles e que eles têm voz para participar dos debates que envolvem tecnologia, ambiente e sociedade. É assim que o CTS ganha sentido e se torna uma ferramenta poderosa para formar cidadãos críticos neste mundão maluco em que estamos vivendo. 

Até mais!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Episódio 1: Lendo Richard Feynman decentemente

Episódio 1: Lendo Richard Feynman decentemente    Desde 2010 tenho publicado neste blog alguns textos e atividades sobre minhas práticas docentes em Física, realizadas em diferentes escolas públicas e particulares que oferecem Ensino fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior. Decidi neste ano de 2019 mudar um pouco esse formato. Neste momento, tenho interesse em organizar e divulgar nesse espaço virtual o processo de planejamento e avaliação do que, por enquanto , vou chamar “ práticas de aprendizado em ciências ”.Digo isso dessa maneira pois ainda não fiz uma revisão sistemática sobre esse termo e tenho a intuição de que essa ideia não é nova. A ideia que gostaria de trazer aqui se assemelha a compreensão de aprendizagem proposta pela professor Paloma Chaves no texto “ Matética: A Arte de Aprender ”. Ao invés de estudar com profundidade novas formas de Ensinar Física eu gostaria de passar a investigar novas formas que os alunos Aprendem Física. Acredito que...

Episódio 5 - Tecnologia, Conhecimento e Ancestralidade

Hoje um vizinho veio me pedir ajuda para resolver um problema em sua tomada no seu apartamento. Ele chegou dizendo:  "Sou desses meninos criados pela avô mano, não sei fazer essas coisas, você é físico, tem um monte de ferramentinhas ae, faça sua magia!" Moramos em um desses prédios antigos, sem elevador, sem garagem, sem síndico, mas com muita fiação elétrica antiga e gente boa que se ajuda. Fiquei pensando em que momento da nossa história humana fomos perdendo a cultura de fuçar e fazer nossos "gatos técnicos" para solução de problemas manuais do cotidiano. Afinal, deveria fazer parte da nossa ancestralidade brasileira montar arapucas mirabolantes como os índios, costurar lindas rendas como as antigas baianas ou construir belíssimos tambores africanos com couro. Conheci um cara que conseguia fazer um Fusca com motor parado funcionar com um pedaço de lápis. Como dizem por aí "o brasileiro precisa ser estudo pela NASA!", não é essa a fama que l...

Episódio 3: Conhecimento Didático e Conhecimento Pedagógico

Episódio 3: Conhecimento Didático e Conhecimento Pedagógico  Neste episódio realizo a Leitura Analítica do artigo " Formação de Professores e Didática para Desenvolvimento Humano " de José Carlos Libaneo. O que é o Conhecimento Didático? O que é conhecimento Pedagógico? Como integrar na formação profissional os dois tipos de conhecimento que estão dissociados e correndo em paralelo? Como articular o conhecimento pedagógico do conteúdo ao conhecimento dos conteúdos/processos investigativos da ciência ensinada? Como professores podem aprender a introduzir transformações nos objetos de conhecimento de modo a suscitar motivos dos estudantes para a atividade de estudo? Partindo dessas ideias, pretendo tornar evidente as características e diferenças dos conhecimentos didáticos e pedagógicos e refletir junto aos professores em formação inicial de que maneira tais conhecimentos podem ser integrados na elaboração de atividades para alunos do Ensino Médio. Proposta d...