Entre Caquis e Talheres
De acordo com o dicionário, investigar significa examinar, pesquisar ou indagar algo de forma sistemática e cuidadosa para descobrir detalhes, causas ou soluções, seguindo pistas e vestígios. Envolve apurar fatos, analisar informações e buscar a verdade, sendo um processo essencial para a construção de conhecimento e resolução de problemas em diversas áreas, desde a ciência até o direito. Pensando em minhas vivências de infância, uma investigação que marcou profundamente minha história aconteceu quando, brincando em um terreno baldio, eu e meus coleguinhas colhemos caquis diretamente do pé. Como o fruto era abundante, começamos a observá-lo com cuidado, curiosos para entender como ele era por dentro. Desmanchamos completamente os frutos, separando a casca da polpa, e chegamos até a abrir cada caroço que encontrávamos.
Foi então que descobrimos algo inimaginável para crianças de 9 e 10 anos: dentro do caroço do caqui havia o embrião da planta, cuja forma lembrava pequenos objetos do cotidiano, como talheres. Aquela estrutura interna, ao ser observada com atenção, parecia assumir o formato de uma colher, de uma faca e, em alguns casos, até de um garfo. A descoberta nos causou enorme espanto e curiosidade, pois não era algo que conseguíamos explicar naquele momento.
Anos mais tarde, já adulto, consegui encontrar imagens na internet que mostravam essa mesma estrutura no interior da semente do caqui, o que acabou confirmando aquela experiência vivida na infância. Afinal, quem nunca comeu caqui direto do pé dificilmente acreditava quando eu contava essa história. Olha aqui:
Fonte: https://www.reddit.com/r/WTF/comments/wkksc/there_is_a_spoon_knife_and_sometimes_fork_in_a/?tl=pt-br
Mais rescentemente cheguei a fazer um curso de Botânica para professores e levei a questão para as professores que me explicaram que o caqui, cujo nome científico é diospyros spp., é uma angiosperma dicotiledônea. Seu embrião apresenta três partes principais: os cotilédones, geralmente largos e achatados, o eixo embrionário (que inclui a futura raiz e o futuro caule) e, em alguns casos, os resíduos de endosperma, tecido nutritivo que pode aderir ao embrião. Quando a semente é aberta, o modo de corte (longitudinal, transversal ou oblíquo) expõe diferentes seções dessa estrutura tridimensional, fazendo com que a disposição e a simetria dos cotilédones, associadas ao eixo central, produzam formas bidimensionais que lembram colher, faca ou garfo, sem que isso represente estruturas reais ou múltiplas sementes, mas sim variações normais da anatomia embrionária interpretadas visualmente pelo observador.
Agora, enquanto adulto, rememorando essa história, percebo que a informação científica, descrita e consolidada muitos anos depois de minha vivência, não traz tanto significado quanto a experiências significativa acumulada na infância, é como eu escrevi em outro texto sobre o conceito Erfahrung, na leitura de Walter Benjamin, a vivência é como estar dentro do fluxo da vida, sentir e perceber o que acontece. Já a experiência é como relacionar-se com esse fluxo a partir de uma reflexão consciente, extraindo sentidos, aprendizados e transformações para sua trajetória.
Assim, ao revisitar essa cena da infância, compreendo que o ato de investigar, tal como vivido no senso comum, não se restringe à produção de um conhecimento científico formalizado, ainda que possa dialogar com ele posteriormente. Aquela investigação infantil; feita de curiosidade, espanto, observação atenta e partilha com os colegas; constituiu um saber que fez e ainda faz sentido cultural e afetivamente, independentemente de sua validação epistemológica posterior. Isso evidencia que investigar não é uma prática exclusiva da ciência institucionalizada, mas um modo humano de se relacionar com o mundo, capaz de gerar experiências formativas profundas. A descoberta dos “talheres” no interior do caqui, embora não configurasse uma explicação científica naquele momento, foi uma experiência que contribuiu para minha formação integral, articulando sensibilidade, imaginação e curiosidade intelectual. Desse modo, o ensino por investigação não se limita a protocolos rígidos ou a espaços formais de educação: ele pode emergir de vivências cotidianas, dentro ou fora da escola básica ou do ensino superior, revelando que há múltiplas maneiras legítimas de investigar, aprender e atribuir sentido ao conhecimento.
A visão de Anna Maria Pessoa de Carvalho e o LAPEF
Na perspectiva de Anna Maria Pessoa de Carvalho (2018), o ensino por investigação constitui-se como uma abordagem teórica e metodológica comprometida com a formação científica dos estudantes, entendida não apenas como domínio de conteúdos, mas como inserção progressiva na cultura da ciência. Investigar, nesse sentido, não é sinônimo de realizar experimentos isolados ou seguir roteiros prontos, mas criar condições didáticas para que os alunos consigam fazer quatro ações:
- pensem considerando a estrutura do conhecimento científico,
- falem explicitando seus argumentos e ideias,
- leiam textos científicos de forma crítica e
- escrevam com autoria sobre o que aprenderam.
Além disso, dois conceitos são centrais nessa concepção. O primeiro é o da liberdade intelectual oferecida aos alunos, que diz respeito ao grau de autonomia concedido pelo professor durante as atividades. Carvalho propõe diferentes níveis dessa liberdade, que variam desde situações mais diretivas, nas quais o professor define quase todas as ações e decisões, até contextos mais investigativos, nos quais os alunos participam ativamente da formulação de hipóteses, do planejamento das ações e da discussão dos resultados. Nos graus intermediários, considerados característicos do ensino por investigação na educação básica, os estudantes são desafiados a pensar e decidir, ainda que com a mediação constante do professor. O grau máximo de liberdade, em que os próprios alunos escolhem e propõem os problemas a serem investigados, é visto como raro, especialmente nas condições concretas da escola básica.
O segundo conceito fundamental refere-se à elaboração de problemas investigativos, entendidos como o motor da aprendizagem. Um bom problema deve ser passível de resolução pelos alunos, permitir a explicação do fenômeno envolvido, estimular a formulação de hipóteses e a identificação de variáveis relevantes, estabelecer relações com o cotidiano e com outras áreas do conhecimento e, sobretudo, considerar os conceitos espontâneos que os alunos já possuem. No caso das atividades experimentais, o problema deve favorecer a passagem da ação manipulativa para a ação intelectual, conduzindo os estudantes da simples manipulação de materiais à construção de explicações causais e legais.
Esses princípios se concretizam nas chamadas Sequências de Ensino Investigativo (SEI), propostas didáticas que articulam diferentes tipos de atividades, como laboratório aberto, demonstrações investigativas, uso de textos históricos, resolução de problemas abertos e integração de recursos tecnológicos. Nessas sequências, a metodologia é organizada em etapas que estruturam o trabalho pedagógico sem engessá-lo. Em atividades experimentais, especialmente nos anos iniciais do ensino fundamental, esse percurso costuma iniciar-se com a apresentação do problema e o trabalho em pequenos grupos, seguido de uma discussão coletiva sobre como os alunos resolveram a situação proposta. Em um momento posterior, busca-se compreender por que determinada solução funcionou, promovendo a construção de explicações causais, e, em seguida, estabelecem-se relações com situações do cotidiano. O processo se completa com produções individuais, como textos escritos e desenhos, que permitem aos alunos reorganizar e expressar o que aprenderam.
O problema do barquinho - SEI produzida pelo gupo de pesquisa LAPEF
Fonte: Youtube - https://www.youtube.com/watch?v=DM4GBVfugzk
Nesse contexto, o papel do professor é fundamental e assume contornos distintos do ensino tradicional. O docente atua como mediador do processo investigativo, garantindo um ambiente de liberdade intelectual no qual os alunos possam expor suas ideias sem receio de errar. Cabe a ele problematizar adequadamente as situações, formular perguntas que estimulem o raciocínio e promover interações dialógicas entre os alunos e entre alunos e professor. A avaliação, nessa abordagem, é essencialmente formativa, voltada não apenas à verificação de conteúdos conceituais, mas também ao acompanhamento do desenvolvimento da capacidade de argumentar, de ler criticamente e de escrever cientificamente.
A formação de professores para o ensino por investigação, segundo Carvalho, precisa ser coerente com esses princípios e assumir um caráter investigativo e reflexivo. Ela se organiza em torno de três conceitos fundamentais: familiaridade, reconhecimento e fidelidade. A familiaridade refere-se ao espaço dado à discussão das ideias, crenças e concepções que os professores possuem sobre ensino e aprendizagem. O reconhecimento diz respeito à tomada de consciência das diferenças entre suas práticas habituais e as propostas investigativas. Já a fidelidade não significa reprodução mecânica de sequências ou atividades, mas a recriação das propostas em sala de aula, com adaptações às condições concretas e ao contexto sociocultural dos alunos. Nesse processo formativo, a análise coletiva de vídeos de aulas é destacada como uma estratégia potente, pois permite refletir sobre a prática real e discutir as decisões pedagógicas tomadas em situações concretas.
Carvalho também aponta diferenças importantes entre a implementação do ensino por investigação no ensino fundamental e no ensino médio. Nos anos iniciais, os problemas tendem a ser mais simples, os professores são generalistas e mantêm maior contato diário com os alunos, o que favorece a interação e a continuidade das sequências investigativas. Nessas condições, observa-se maior adesão e replicação das propostas. Já no Ensino Médio, os conteúdos são mais complexos e historicamente abrangentes, e as condições de trabalho costumam ser menos favoráveis, com poucas aulas semanais, muitas turmas e vínculos mais frágeis entre professor e alunos. Esses fatores dificultam a concessão de liberdade intelectual e a elaboração de problemas investigativos em contextos marcados por um ensino tradicional e fragmentado.
Do ponto de vista teórico, o ensino por investigação defendido por Anna Maria Pessoa de Carvalho apoia-se no construtivismo piagetiano, especialmente na psicogênese do conhecimento científico, e na teoria sociocultural de Vigotsky, que destaca o papel do outro e da linguagem na aprendizagem. Soma-se a isso um amplo diálogo com autores que investigam as práticas científicas, a argumentação e a alfabetização científica, como Latour, Woolgar, Lemke, Driver, Jiménez-Aleixandre e Kelly, entre outros. O objetivo final dessa abordagem é promover a alfabetização científica, desenvolver habilidades epistêmicas e sociais, favorecer a imersão dos estudantes na cultura científica por meio de práticas discursivas, experimentais e escritas e contribuir para a formação de cidadãos críticos e participativos. Assim, o ensino por investigação se apresenta como uma proposta integrada, que articula teoria, prática e contexto sociocultural, reafirmando a escola como espaço de produção de sentido, diálogo e formação humana.
Em artigo mais rescente, Carvalho (2021), conclui que não é o conteúdo em si que garante a aprendizagem científica, mas o modo como o ensino é organizado. Quando o professor propõe problemas, permite que os alunos trabalhem em pequenos grupos, favorece a discussão coletiva perguntando “como resolveram?” e “por que deu certo?”, e assegura um ambiente não coercitivo em que os estudantes possam errar, argumentar e reformular ideias, os alunos passam a levantar hipóteses, construir explicações, utilizar diferentes linguagens da ciência (oral, escrita, gráfica e matemática) e desenvolver raciocínios hipotético-dedutivos.
Neste mesmo artigo, a autora enfatiza que o fator decisivo para o sucesso do ensino por investigação é o papel do professor. A pesquisa evidencia que criar um ambiente de liberdade intelectual, diálogo e problematização não é simples e depende fortemente da formação docente. Assim, a autora conclui que a formação inicial e continuada de professores é condição indispensável para a consolidação dessa abordagem, pois é o professor quem media a passagem da ação manipulativa para a ação intelectual e quem transforma as vivências investigativas dos alunos em experiências formativas de acesso à cultura científica.
No entanto, comparado a outras abordagens acerca do Ensino por Investigação dentro da área do Ensino de Ciências, o modelo proposto por Anna Maria Pessoa de Carvalho apresenta algumas limitações que não comprometem sua relevância, mas evidenciam tensões e desafios de implementação. Uma das principais limitações refere-se à forte dependência da mediação docente: o sucesso das atividades investigativas exige professores com sólida formação teórica, domínio do conteúdo e capacidade de conduzir discussões abertas sem recair no ensino expositivo, o que nem sempre é viável nas condições reais da escola. Além disso, o modelo demanda tempo pedagógico ampliado para o desenvolvimento das etapas investigativas, o que entra em conflito com currículos extensos, fragmentados e orientados por avaliações externas. Outra limitação está na dificuldade de operacionalizar altos graus de liberdade intelectual, sobretudo no Ensino Médio, em contextos marcados por turmas numerosas, carga horária reduzida e cultura escolar tradicional.
O ensino por investigação, tal como estruturado, tende a funcionar melhor para determinados conteúdos e formatos de atividade, apresentando desafios para a abordagem sistemática de conceitos altamente abstratos ou matematicamente formalizados. Um exemplo claro ocorre no ensino de cinemática no Ensino Médio, especialmente no estudo de funções horárias do movimento uniformemente variado. Propor que os alunos “investiguem” as equações do movimento por meio de experimentos com carrinhos e trilhos pode gerar boas discussões qualitativas sobre aceleração, mas dificilmente leva, de forma sistemática, à dedução rigorosa das equações matemáticas, como as tradicionais de cinemática a seguir, sem uma intervenção mais diretiva do professor.
Nesse caso, a formalização algébrica exige um nível de abstração que ultrapassa o que a investigação empírica, sozinha, consegue sustentar. Outro exemplo aparece na Química, no ensino de modelos atômicos e estrutura eletrônica. Atividades investigativas podem explorar evidências históricas, como os experimentos de Rutherford ou os espectros de emissão, mas a compreensão do modelo quântico do átomo, com orbitais descritos por funções de onda e probabilidades, não é diretamente acessível à investigação experimental escolar. A abordagem investigativa precisa então ser combinada com explicações teóricas, analogias e representações matemáticas, pois a abstração envolvida não emerge espontaneamente da atividade investigativa.
Por fim, quando comparado a perspectivas mais críticas ou sociopolíticas do Ensino de Ciências, o modelo de Carvalho pode ser visto como menos explícito na problematização das relações entre ciência, poder, desigualdades sociais e saberes não científicos, concentrando-se prioritariamente na enculturação científica e nas práticas internas da ciência escolar. Para isso, vamos explorar a seguir, outras alternativas para atividades investigativas em sala de aula.
Comentários
Postar um comentário