Fonte: feito à mão (Chatgpt)
Dias atrás, uma amiga no serviço, que também é física e também com muitos anos de experiência em sala de aula, estava preparando uma aula sobre o fenômeno das marés e discutindo sobre o fabuloso efeito da força aparente centrífuga na elevação das águas ao redor do planeta. Ambos já tínhamos lecionado o tema muitas vezes no Ensino Médio, mas agora, trabalhando com a formação de outros professores dentro de um curso de Ciências da Natureza, nos questionamos sobre como abordar a temática do ponto de vista da interdisciplinaridade, o que torna a construção desse conhecimento ainda mais cabeluda.
No livro Introdução ao Pensamento Complexo (1990), Morin afirma:
A complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneos inseparavelmente associados: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomênico.
Dessa forma, podemos compreender que a complexidade é um modo de pensar que articula diferentes dimensões da realidade, reconhece a teia de relações que formam os fenômenos e aceita a presença de incertezas. O autor nos convida com isso a superar o pensamento reducionista e compreender o mundo em sua riqueza, diversidade e interconexão. Dessa ideia, podemos destacar quatro alertas que podem nos ajudar a pensar de maneira interdisciplinar em sala de aula:
🚨1. Evite tratar os fenômenos físicos como blocos isolados: cuidado para não fragmentar demais os conteúdos. Fenômenos físicos só ganham sentido quando analisados em relação ao contexto, às outras áreas e às experiências dos estudantes. Sempre questione: “Como este conteúdo se conecta ao cotidiano, à tecnologia, à sociedade e às demais ciências?”
🚨2. Não reduza um fenômeno a apenas uma explicação: a Física ensina que um sistema pode ser descrito por múltiplos modelos e perspectivas. Evite impor uma única leitura ou abordagem. Integre diferentes níveis (macro, micro, simbólico, matemático, tecnológico) e permita que os alunos identifiquem a coexistência do uno e do múltiplo.
🚨3. Reconheça e trabalhe com incertezas e paradoxos: a sala de aula não é um sistema linear. Erros, imprevistos e contradições fazem parte da aprendizagem. Não esconda incertezas epistemológicas. Mostre que a ciência é dinâmica, revisável e cheia de retroações; isso desenvolve pensamento crítico e compreensões mais profundas.
🚨4. Evite “disciplinarizar demais” o conhecimento: conteúdos de Física se fortalecem quando dialogam com outras áreas (Matemática, Artes, História, Biologia, Tecnologia). Fuja de fronteiras rígidas. Planeje atividades que articulem diferentes saberes, permitindo que o estudante perceba que fenômenos reais ultrapassam a lógica conteudista.
Porém, lembramos de Edgar Morin só muito depois. Aliás, retomando nossas aulas no passado, fomos percebendo que fizemos inclusive o oposto do recomendado nos quatro itens acima, explicando o fenômeno das marés totalmente isolado, reduzido apenas à atração gravitacional da Lua, ao contexto geográfico, à vida marinha ou ao cotidiano de comunidades costeiras. Muitas vezes, tratamos o sistema Terra–Lua–Sol como algo linear e previsível, evitando discutir atrasos, incertezas, paradoxos, irregularidades e perguntas que desafiassem nosso modelo simplificado. Enfim, transformando o fenômeno real das marés em uma sequência mecânica de fórmulas descontextualizadas, assim como aprendemos em nossas respectivas formações.
Buscando compreender melhor as dificuldades encontradas para o trabalho interdisciplinar no contexto das aulas de Ciências da Natureza, lemos o trabalho de Lanúzia Almeida Brum Avila e colaboradores, de 2017. A autora identifica três categorias principais de dificuldades que professores enfrentam ao implementar a interdisciplinaridade na escola. A primeira categoria está ligada à fragmentação disciplinar, manifestada em conteúdos ensinados de forma isolada e descontextualizada, à falta de relação evidente entre as disciplinas e à desconexão entre a prática interdisciplinar e o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola. A segunda, se refere às dificuldades de diálogo com colegas e gestores, que incluem a falta de comunicação e planejamento adequado entre docentes de diferentes áreas, a escassez de tempo dedicado ao desenvolvimento de projetos interdisciplinares e o pouco apoio vindo da coordenação pedagógica e da gestão escolar. Por fim, a terceira categoria abrange problemas de interesse e conhecimento, destacando a falta de formação docente específica em interdisciplinaridade, uma formação inicial mais focada na especialização do que na integração de saberes, a resistência de professores e alunos a propostas inovadoras e o desinteresse dos estudantes por atividades de pesquisa e abordagens interdisciplinares.
Pensando nos resultados dessa pesquisa, percebemos que a interdisciplinaridade não se limita ao conteúdo ou à busca por relações entre conhecimentos de diferentes áreas. A partir daí, buscamos alguns autores de referência que enfatizam que a interdisciplinaridade envolve dimensões epistemológicas, sociológicas e metodológicas, ou seja, modos de organizar práticas, relações, saberes, modos de trabalhar e modos de estar com o outro.
Começamos a estruturar nosso arcabouço interdisciplinar com algumas das ideias do professor Silvio Gallo em seu texto "Educação e interdisciplinaridade (1994)", onde defende que a educação é um processo mais amplo que abarca a instrução e a completa, formando o indivíduo integralmente, tanto intelectual quanto socialmente. Dessa forma, pensa o professor, a instrução instrumentaliza o aluno, fornecendo as ferramentas de comunicação (língua materna e matemática) e os conhecimentos básicos sobre o mundo e a sociedade (Cosmologia, Geografia, História). Contudo, a educação vai além da transmissão de conteúdos, focando na formação da personalidade e na aquisição de uma postura autêntica frente à realidade. Essa formação ocorre por meio de um processo microssocial no qual o aluno é levado a exercer posturas de liberdade, respeito e responsabilidade, percebendo essas práticas nos demais membros da comunidade escolar. Ou seja, o processo educacional global, que engloba instrumentalização (conteúdos) e formação social (método de trabalho), é essencialmente uma questão de método.
Como recomendação, o professor Gallo sugere que o professor utilize o seu pequeno espaço de autonomia para romper com a compartimentalização. A postura desejável é minimizar as aparências da compartimentalização, buscando mostrar que os conteúdos de sua aula não estão isolados, mas se relacionam com o restante que o aluno aprende na escola. É fundamental que o aluno consiga compreender as inter-relações básicas entre as disciplinas, distinguindo as instrumentais das que compõem a cosmologia ou explicitam a vivência histórica. Além disso, o processo educacional deve começar pela realidade que o aluno vivencia no cotidiano, o que pode gerar uma educação mais integrada e melhorar o aproveitamento.
Em suma, o professor Sílvio Gallo convida os professores a refletir e a romper as "amarras" de suas especialidades, agindo no seu espaço de autonomia para superar a fragmentação do saber. Aqui damos atenção a primeira dimensão importante para o trabalho interdisciplinar: a dimensão epistemológica. No contexto de uma aula de Física sobre o fenômeno da maré, isso implica em minimizar a aparência de compartimentalização ao não tratar o conteúdo isoladamente. O professor deve explicitar as inter-relações , mostrando que a Física está ligada à Cosmologia (compreensão do Universo), à Matemática (ferramenta instrumental) e à Geografia/História (vivência e apreensão do espaço humano). Mais do que isso, é preciso mudar o método, começando o processo educacional pela realidade que o aluno vivencia no cotidiano (por exemplo, a influência das marés na pesca ou navegação), em vez de apenas racionalizações abstratas, garantindo que o aluno perceba o conhecimento como parte de um todo complexo e inter-relacionado. Vejamos em profundidade o que ocorre com as marés:
Imagem 01 - Ilustra como as forças gravitacional e centrífuga atuam em conjunto para criar as marés na Terra.
Em uma aula tradicional de Física, o aspecto mais intrigante do mecanismo das marés (como o ilustrado na imagem 01) é a formação do "bojo" de maré no lado da Terra que está oposto à Lua, e não apenas no lado voltado para ela. Contrariando nossa intuição inicial, a água ali mostrada não é "puxada" por nada, mas sim "deixada para trás" ou, mais precisamente, "jogada" para fora pela inércia. Essa força de afastamento é a força centrífuga resultante do movimento combinado da Terra:
- Rotação Orbital em Torno do Baricentro: A Terra e a Lua orbitam um centro de massa comum conhecido como baricentro. Como a Lua tem uma massa considerável, o baricentro está localizado a aproximadamente 4.670 km do centro da Terra (ou seja, dentro do planeta). Ao girar em torno desse ponto deslocado, a Terra experimenta uma aceleração centrífuga uniforme em toda a sua massa, sempre direcionada para fora do sistema, ou seja, para longe da Lua.
- Combinação de Forças: É essa força centrífuga, agindo no lado oposto, que se combina com a atração gravitacional direta da Lua na face voltada para ela.
Essa combinação de atração gravitacional diferencial (causando um bojo) e força centrífuga (causando o outro bojo) é a essência do fenômeno, sendo responsável pelas duas marés altas diárias que observamos:
Imagem 02 - identificação do baricentro dentro do planeta Terra

Agora, pare e observe cuidadosamente tudo que foi dito nos parágrafos anteriores e imagens 1 e 2. Tudo, inclusive os números, é incompleto e esconde complexidades cruciais para uma compreensão total do fenômeno real. Embora o modelo apresentado acima seja uma ferramenta pedagógica valiosa para ilustrar a causa primordial do fenômeno das marés, ele é uma simplificação drástica da realidade, pois assume um planeta idealizado, totalmente coberto por um oceano uniforme e sem atrito, ignorando completamente os efeitos dinâmicos e caóticos que definem o comportamento real das marés, como a rotação da Terra, que arrasta os bojos para frente; a complexa batimetria e a presença dos continentes, que refletem e amplificam as ondas de maré criando padrões de ressonância únicos em cada costa; a inércia e a velocidade finita de propagação da onda de maré; e a influência gravitacional do Sol, que modula a amplitude das marés ao longo de ciclos sazonais, tornando a previsão precisa um desafio que depende de modelos hidrodinâmicos complexos e de dados observacionais locais.
Dar conta de todos esses desdobramentos em poucas aulas do Ensino Médio é impossível, ainda mais contando apenas com a perspectiva da Física Clássica e Mecânica Celeste, recorte que é comum nos curriculos da escola básica que tratam sobre o tema. Por isso a dimensão epistemológica da interdisciplinaridade é importante, ela transforma o fenômeno de uma explicação física simplificada em um problema complexo, que exige o reconhecimento dos limites dos modelos, a articulação de múltiplos saberes e a compreensão crítica do próprio processo científico. Tal dimensão impede que o aluno confunda modelo com realidade e permite que enxergue as marés como aquilo que realmente são: um fenômeno natural profundamente complexo, interdisciplinar e dependente de redes de saberes, métodos e práticas.
A segunda dimensão relevante é aquela destacada por Gallo, que enfatiza a necessidade de partir da realidade vivida pelo aluno e reconhecer o papel da sociedade na construção dos saberes:
A dimensão interdisciplinar sociológica consiste em compreender os fenômenos científicos articulando-os à vida social: suas implicações para grupos humanos, suas relações com desigualdades, culturas, modos de vida e decisões políticas. Ela reconhece que ciência e sociedade se coconstituem, e que ensinar ciência exige analisar como fenômenos naturais participam da organização social e como esta, por sua vez, os transforma.
Na sua obra "Ciência em Ação" o antopólo e sociólogo francês Bruno Latour trata da análise da ciência em sua prática e construção diária, e não apenas em seus resultados finais já estabelecidos. Ali, o autor apresenta a dimensão interdisciplinar sociológica como a compreensão de fenômenos naturais, científicos, tecnológicos ou culturais em articulação com as estruturas, práticas, valores e conflitos da vida social, rompendo com explicações puramente técnicas para situá-los em contextos coletivos. Nessa perspectiva, o fenômeno passa a ser entendido por seus efeitos sociais (tais como as marés que influenciam pesca, moradia e vulnerabilidade costeira), incorporando relações de poder, desigualdade e cultura que definem quem é mais afetado e por quê. Ele também evidencia que o conhecimento científico não é neutro, pois envolve escolhas históricas, interesses e exclusões, como ocorre nos debates sobre zoneamento costeiro e monitoramento das marés. Com base nisso, podemos deslocar o ensino para uma aprendizagem situada, ancorada nas experiências dos estudantes, nas práticas culturais de suas comunidades e nos problemas reais que enfrentam, tornando o fenômeno parte viva e significativa do mundo social em que estão inseridos.
Para o nosso exemplo, a dimensão sociológica pode ser explorada tomando como como base notícias reais e afetam populações em diferentes contextos de vulnerabilidade:
Comunidades no litoral do Ceará lutam contra o avanço do mar
No Ceará, famílias de comunidades pesqueiras vêm sendo deslocadas por causa da erosão costeira causada pela elevação do nível do mar. Estruturas como casas, comércios e escolas foram comprometidas, e as obras de contenção (como espigões) também alteram a dinâmica social e a atividade pesqueira local. Notícias ambientais
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Pescadores lidam com marés mais instáveis e peixes escassos
Um relatório divulgado pelo Conselho Pastoral dos Pescadores indica que 97% das comunidades pesqueiras entrevistadas relatam impactos das mudanças climáticas: marés imprevisíveis, menos peixes, e desorganização dos saberes tradicionais sobre quando e onde pescar. Brasil de Fato
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Elevação do nível do mar ameaça cidades costeiras
O Cemaden, órgão do governo brasileiro, alerta que o aumento do nível das marés pode provocar inundações, erosão e até infiltração da água salgada em regiões costeiras. www2.cemaden.gov.br
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Ameaças existenciais para comunidades costeiras segundo a ONU
Um texto das Nações Unidas chama atenção para os riscos sociais gerados pela elevação do nível do mar: inundação de zonas costeiras, desalojamento de comunidades, contaminação da água doce, perdas econômicas em pesca, agricultura e turismo, e até migração forçada. As Nações Unidas em Brasil
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Erosão da costa brasileira já destrói casas
A costa brasileira sofre erosão acelerada — por exemplo, em Atafona (RJ) centenas de residências já foram destruídas enquanto o mar avança para o continente. Brazil's coast eroding faster than ever as Atlantic advances
Essas notícias mostram que as marés não são apenas um fenômeno físico abstrato, mas têm impactos sociais concretos: comunidades vulneráveis, deslocamentos, perdas econômicas, mudanças no modo de vida das pessoas. Incluir essas dimensões nas aulas pode ajudar os alunos a ver a Física (e a ciência) como algo conectado à vida real, não apenas fórmulas. Também abre espaço para discussão sobre justiça ambiental, adaptação às mudanças climáticas e ética no uso dos recursos naturais.
Por fim, podemos citar a dimensão metodológica. Aquela que nos dá o sentido mais pragmático do fazer interdisciplinar. em seu recente texto sobre interdisciplinaridade, após 50 anos de pesquisa sobre o tema, Ivani Fazenda (2025) esclarece que uma atitude interdisciplinar é uma postura existencial e ética que ultrapassa técnicas ou procedimentos formais. Trata-se de um modo de ser e de pesquisar que se sustenta em quatro princípios fundamentais: espera, humildade, respeito e desapego, que orientam a relação do professor consigo mesmo, com o outro e com o fenômeno investigado. Essa atitude implica uma imersão profunda na própria prática, reconhecendo que a interdisciplinaridade nasce mais da ação vivida do que da reflexão abstrata. Dessa forma, o professor que ousa desenvolver uma prática interdisciplinar é na verdade convidado a reencontrar sua “marca registrada”, isto é, uma estética e uma ética próprias que se revelam quando ele se compromete integralmente com sua experiência educativa (bonito né!?).
Tal atitude exige escuta sensível, abertura ao diálogo, acolhimento das contradições e disposição para trabalhar com subjetividades, simbolismos e múltiplas linguagens. Com esse raciocínio, Fazenda (2025) enfatiza que a metodologia interdisciplinar não se estrutura como um método rígido, mas como um conjunto de procedimentos que se constroem no percurso da prática docente, sempre em diálogo com a vida e com olhar de pesquisador. Em suma, diz a autora, que a prática interdisciplinar deve ser encarada como um processo vivo de investigação. Por isso, as Histórias de Vida ocupam papel central: permitem recuperar singularidades, compreender a prática em profundidade e articular reflexão, ação e formação.
Diante dessas ideias, uma das metodologias que faz sentido para o exemplo discorrido neste ensaio e nossa vivência enquanto docentes formadores de professores de Ciências da Natureza, é a proposta de projetos por indagação de Fernando Hernández-Hernández, que não é uma "receita" ou uma técnica, mas sim uma filosofia educacional que coloca a vida e as perguntas das crianças no centro do processo de ensino e aprendizagem. Seu maior objetivo é formar cidadãos críticos, curiosos e capazes de aprender a aprender, preparados para um mundo em constante mudança.
De maneira objetiva, podemos pensar o desenvolvimento dos projetos por indagação em 6 fases, que são reflexíveis e negociáveis:
Provocação e Escuta: O professor cria um ambiente estimulante (com livros, imagens, uma notícia, uma visita, uma conversa) e escuta atentamente as perguntas e comentários das crianças. Desse diálogo, surge um tema de interesse coletivo.
Formulação de Perguntas: O grupo levanta tudo o que já sabe sobre o tema e, principalmente, tudo o que gostaria de saber. Cria-se uma "teia de perguntas" que guiará a investigação.
Planejamento e Investigação: Coletivamente, planejam como buscar as respostas: ir à biblioteca? entrevistar um especialista? fazer uma experiência? pesquisar na internet? visitar um museu? O professor organiza os grupos e os recursos.
Desenvolvimento e Descobertas: É a fase mais longa. Os alunos buscam informações, analisam, debatem, criam hipóteses, descartam ideias, fazem rascunhos e registram suas descobertas (por meio de desenhos, textos, gravações, etc.).
Síntese e Socialização: Os alunos decidem como vão compartilhar o que aprenderam. Pode ser uma exposição, uma peça de teatro, um livro, um documentário, um blog. O importante é que seja uma criação autêntica do grupo.
Avaliação e Reflexão: O grupo reflete sobre todo o processo: O que aprendemos? Como aprendemos? O que foi difícil? O que faríamos diferente? O que novas perguntas surgiram? Esta etapa é fundamental para consolidar a aprendizagem.
Uma ideia de Projeto por Indagação sobre as marés
Inspirado na metodologia por projetos indagadores de Fernando Hernández-Hernández e tudo que foi discutido até aqui, o projeto a seguir propõe uma investigação interdisciplinar sobre o fenômeno das marés que se afasta radicalmente da abordagem fragmentada tradicional. Em vez de começar com leis físicas descontextualizadas, o trabalho se inicia com uma provocação ancorada na realidade: notícias sobre o avanço do mar em comunidades costeiras, a erosão que destrói casas no litoral brasileiro e os relatos de pescadores que veem seus saberes tradicionais sendo desafiados por mudanças nos ciclos naturais. Desse choque entre o fenômeno físico e suas consequências humanas tangíveis, pode surgir perguntas genuínas dos alunos: por que o mar sobe e desce? Por que a maré alta ocorre também no lado oposto à Lua? Como essas forças invisíveis podem alterar tanto a vida das pessoas?
A investigação se desenvolve como uma teia de indagações que naturalmente rompe as fronteiras disciplinares. Os alunos, organizados em grupos de interesse, buscam respostas que vão muito além da explicação gravitacional. O grupo dedicado à física descobre a elegante dança do sistema Terra-Lua em torno do baricentro e a combinação entre força gravitacional e força centrífuga, mas também se depara com os limites desse modelo idealizado ao conversar com os colegas de geografia, que mostram como os continentes, a batimetria e a rotação terrestre tornam o comportamento real das marés uma complexidade caótica e local (estamos fantasiando que tudo der certo e foi possível esse contato com diferentes áreas, Ok?).
Enquanto isso, o grupo que investiga a dimensão humana entrevista pescadores, descobre calendários de marés tradicionais e analisa reportagens sobre famílias desalojadas pela erosão costeira (aqui sonhando com saídas pedagógicas lindas, é claro). Eles percebem que o fenômeno físico se manifesta de maneira desigual na sociedade, atingindo com mais força comunidades vulneráveis e revelando relações de poder na ocupação do território. Aqui, a perspectiva sociológica de Bruno Latour ilumina a compreensão de que a ciência não é neutra, mas se constrói em meio a interesses, valores e conflitos sociais.
O ápice do processo é a síntese dessas múltiplas vozes em uma criação coletiva – um documentário ou jornal multimídia que articula as explicações físicas com os impactos geográficos, os saberes tradicionais e as urgentes questões sociais. O produto final não é um fechamento, mas a demonstração de uma compreensão complexa, onde o modelo científico dialoga com a realidade vivida, sem se sobrepor a ela.
A avaliação final transcende o conteúdo para focar no processo: como foi trabalhar com a incerteza? O que exigiu mais humildade intelectual: reconhecer os limites do modelo físico ou valorizar o saber tradicional? Como a espera pela contribuição do outro grupo enriqueceu nossa compreensão? Ao final, os alunos não carregam apenas uma explicação sobre marés, mas uma postura indagadora diante do mundo, a capacidade de ver os fenômenos como tecidos complexos onde o físico, o social, o ecológico e o histórico se entrelaçam, formando a rica e desordenada tapeçaria da realidade que Edgar Morin nos convida a compreender.
Diante de uma proposta como esta, é natural que surja a pergunta: em qual realidade escolar brasileira isso seria possível? Sim, é um desafio que exige ruptura, criatividade e colaboração. Mas imagine, por um momento, o potencial transformador de mobilizar professores de diferentes áreas em torno de um fenômeno tão rico e tangível quanto as marés. Seria uma oportunidade única de usar a vastidão da nossa costa como uma sala de aula a céu aberto, onde a física da Lua, a geografia do litoral, a história das comunidades e os urgentes problemas socioambientais se encontrariam. Mais do que tentador, é um convite para ressignificar o sentido de aprender e ensinar, transformando a escola em um espaço vivo de investigação do mundo real. O que nos impede, afinal, de começar?
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